Neurofibromatose tipo 1: por que alguns plexiformes transformam e outros não? Incidência, biologia da transformação maligna e vigilância

Por Guilherme Portella|Publicado em 23 de outubro de 2025

Transformação maligna em NF1: incidência, por que e como alguns PN evoluem para MPNST#

Escopo. Artigo extenso, técnico e focado em incidência, razões e mecanismos da transformação maligna de neurofibromas plexiformes (PN) em tumores malignos da bainha do nervo periférico (MPNST) no contexto da NF1. Tratamentos não são o foco; prioriza‑se o porquê e o como do processo, além de vigilância e fatores de risco. Referências ao final em Vancouver.


1) Incidência e panorama clínico#

A NF1 (17q11.2) resulta de variantes inativadoras em NF1, gene da neurofibromina (um GAP de RAS). A perda de função promove hiperativação RAS–MAPK, predispondo a tumores derivados da linhagem de células de Schwann entre outras manifestações sistêmicas.

  • Prevalência populacional:1:2.500–1:3.000 indivíduos.
  • Lesão benigna de risco: neurofibroma plexiforme (PN).
  • Transformação maligna: PN → ANNUBP (Atypical Neurofibromatous Neoplasm of Uncertain Biologic Potential) → MPNST.
  • Risco vitalício de MPNST em NF1: tipicamente ~8–13%, com apresentação mais precoce que nos casos esporádicos. Uma fração adicional pode ser radioinduzida.

2) Do benigno ao maligno: a sequência histo‑molecular#

A progressão típica segue um continuum morfo‑molecular:

  1. PN (benigno) – Perda bialélica de NF1 em Schwann → proliferação e arquitetura plexiforme.
  2. ANNUBP (lesão precursora) – surgem hipercelularidade, atipia nuclear, perda de arquitetura e mitoses discretas; frequentemente associada a alterações em CDKN2A/B.
  3. MPNST (alto grau) – aquisição de TP53 e inativação do PRC2 (geralmente SUZ12/EED), com perda de H3K27me3 e reprogramação epigenética ampla.

Nota diagnóstica. O uso integrado de morfologia + imuno (p.ex., H3K27me3, p16, S100/SOX10) + genética (painéis para NF1/CDKN2A/TP53/PRC2) é recomendado para reduzir falsos negativos/positivos na distinção PN/ANNUBP/MPNST.


3) Por que alguns PN transformam e outros não? — Mecanismos em camadas#

3.1 Iniciação obrigatória, porém insuficiente: perda bialélica de NF1#

  • A segunda batida somática em NF1 desliga a neurofibromina e ativa cronicamente RAS–MAPK.
  • Muitos PN permanece(m) estáveis por anos → NF1 loss é necessário, mas não suficiente.

3.2 Gatekeepers da progressão (ciclo e checkpoints)#

  • CDKN2A/B (9p21): perda de p16^INK4A/p14^ARF remove freios do ciclo celular; frequente em ANNUBP e estágio de transição.
  • TP53: inativação facilita evasão de apoptose e tolerância a dano genômico, acelerando ANNUBP → MPNST.

3.3 Reprogramação epigenética via PRC2 (perda de H3K27me3)#

  • Inativação de SUZ12/EED (complexo PRC2) leva à perda global de H3K27me3desrepressão transcricional, plasticidade, invasão e fenótipo stem‑like.
  • Implicação: dois PN com a mesma perda de NF1 podem divergir se PRC2 for (ou não) inativado.

3.4 Microambiente permissivo (eixos parácrinos)#

  • TGF‑β1, hipóxia e matriz extracelular remodelada atuam como amplificadores da progressão; atividade neural e interação neurônio–Schwann–imune modulam o ecossistema tumoral.

3.5 Heterogeneidade intertumoral e subgrupos multi‑ômicos#

  • Trajetórias distintas convergem em padrões comuns: NF1 loss (início) → CDKN2A/B (intermediário) → TP53/PRC2 (alto grau).
  • Subgrupos transcricionais/epigenéticos explicam PN estáveis vs. progressivos e MPNST com comportamentos divergentes.

Síntese mecanística. A transformação exige (i) perda de checkpoints (CDKN2A/TP53), (ii) reprogramação epigenética (PRC2/H3K27me3‑), (iii) microambiente permissivo (eixos TGF‑β/hipóxia). PN sem esse combo permanecem benignos.


4) Fatores de risco clínico‑genéticos#

DomínioFatorImpacto resumido
Carga tumoralWB‑MRI com múltiplos PN extensos/subclínicosAumenta o “substrato transformável”; útil para baseline e estratificação
GenótipoDeleção do gene inteiro NF1 (microdeleção ~1,4–1,5 Mb)Associada a maior carga tumoral e risco elevado de MPNST
ExposiçãoRadioterapia préviaEleva risco de MPNST radioinduzido; prognóstico geralmente pior
HistóriaFamiliar de MPNSTSugere background modificador (genes/epigenética)

Sinais de alerta clínicos (“red flags”): dor nova/progressiva, crescimento acelerado, endurecimento/nódulos intratumorais, déficit neurológico e recorrência após ressecção.


5) Como acontece a transformação — modelo integrativo#

  1. Iniciação (PN): two‑hit em NF1 em Schwann → proliferação/arquitetura plexiforme.
  2. Lesão precursora (ANNUBP): ganho de CDKN2A/B (± CNVs) → hipercelularidade/atipia, mitoses discretas, captação metabólica aumentada (p.ex., FDG‑PET).
  3. Alto grau (MPNST): TP53 + PRC2 loss/H3K27me3‑ → programas de invasão, desdiferenciação, metástase, heterogeneidade clonal.
  4. Microambiente: TGF‑β, hipóxia e matriz sustentam seleção de subclones agressivos.

6) Vigilância e avaliação de risco (detecção do porquê/como cedo)#

  • Exame clínico seriado por equipe experiente; educação do paciente sobre red flags.
  • WB‑MRI (ao menos na transição para vida adulta) para mapear carga tumoral interna e definir intervalo individualizado.
  • Lesão suspeitaRM segmentar (com DWI/ADC) e FDG‑PET/CT (metabolismo: SUV e/ou tumor‑to‑liver ratio), interpretados em conjunto com clínica.
  • Patologia molecular: IHQ para H3K27me3, p16, S100/SOX10; painel genético NF1/CDKN2A/TP53/PRC2. Perda de H3K27me3 respalda MPNST, porém não é universal nem absolutamente específica.

Para registro clínico/acadêmico no seu site (NF1 Study Hub): campos estruturados para genótipo NF1 (incl. whole‑gene deletion), histórico de RT, carga WB‑MRI e red flags viabilizam estratificação de risco e recomendações personalizadas.


7) Limitações das evidências e pontos controversos#

  • Vieses de encaminhamento em centros terciários podem superestimar risco absoluto.
  • Cut‑offs PET/ADC variam entre coortes e técnicas; recomenda‑se validação local.
  • H3K27me3: marcador útil, porém não absoluto (exceções por subtipo e contexto).

Conclusão#

Nem todo PN progride para MPNST porque NF1 loss é condição necessária, porém não suficiente. A transformação requer acúmulo coordenado de eventos de ciclo/checkpoints (CDKN2A/B, TP53), reprogramação epigenética (PRC2/H3K27me3‑) e um microambiente permissivo (eixos TGF‑β/hipóxia), modulados por fatores de risco clínico‑genéticos (p.ex., deleção gênica completa de NF1, carga tumoral e radioterapia). A vigilância deve integrar clínica, WB‑MRI, imagem funcional e patologia molecular para capturar ANNUBP/MPNST precocemente.


Referências (Vancouver)#

  1. Evans DGR, et al. Malignant peripheral nerve sheath tumours in NF1. J Med Genet. 2002;39:311–14.
  2. Friedman JM, et al. Neurofibromatosis 1. GeneReviews. NCBI Bookshelf; 2022–.
  3. De Raedt T, et al. Increased risk for MPNST in NF1 microdeletion patients. Am J Hum Genet. 2003;72:1281–84.
  4. Upadhyaya M, et al. Germline NF1 mutations and MPNST risk heterogeneity. Hum Mutat. 2006;27:717–28.
  5. Benz MR, et al. Quantitative FDG‑PET in peripheral nerve sheath tumors. Cancer. 2010;116:451–58.
  6. Brockman Q, et al. PRC2 loss drives MPNST metastasis. Nat Commun. 2022;13:6489.
  7. Knight SWE, et al. MPNST in childhood and adolescence. Children. 2022;9:1101.
  8. Carton C, et al. ERN‑GENTURIS tumour surveillance guidelines for NF1. Eur J Hum Genet. 2023;31:…
  9. Geitenbeek RTJ, et al. FDG‑PET/CT to detect MPNST in NF1. Eur J Nucl Med Mol Imaging. 2022;49:…
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  13. Jansma CYMN, et al. Radiotherapy in MPNST and the impact of NF1 status. Neuro‑Oncology. 2025;…
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